quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Guerra ao Imposto (d"As Farpas")

"Há em Portugal quatro partidos: o partido histórico, o regenerador, o reformista e o constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, e conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo: são irreconciliáveis. Do fundo dos seus artigos de jornal, latem perpetuamente uns contra os outros. Tem-se tentado uma pacificação, uma união impossível! Eles só têm de comum a lama do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios, que separam estas opiniões? -Vejamos: O partido regenerador é constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais que é necessária a economia.
O partido histórico é constitucional, bastante monárquico e prova irrefutávelmente que é assaz aproveitável a ideia da economia.
O partido constituinte é constitucional e monárquico e da subida atenção a economia.
O partido reformista é monárquico, e constitucional e é doidinho pela economia.
Todos quatro são católicos.
Todos quatro são centralizadores.
Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem.
Todos quatro querem o progresso, e citam a Bélgica. Todos quatro estimam a liberdade.
Quais são então as desinteligências? - Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos modos.
O partido histórico diz gravemente que é necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega com uma divergência resoluta, e prova com abundância de argumentos que o que se deve respeitar são - as Públicas Liberdades!
A conflagração é manifesta!
Na sua acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto: porque, não há remédio, é necessário (...).
- Caminhamos para uma ruína! exclama o presidente do conselho - O deficit cresce! O país está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto (...).
Mas então o partido regenerador, por exemplo, que está na oposição, brame de desespero (...):
- Como assim! exclamam todos, mais impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, conspira-se; (...). Prepara-se o cheque ao ministério histórico, vem a votação... zás! cai o ministério histórico.
E ao outro dia, o partido regenerador no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os fundos desceram, as transacções suspenderam-se; os comboios cruzam-se cheios de autoridades demitidas, o crédito diminuiu, a opinião descreu mais, a fé pública dissolveu-se mais - mas finalmente caiu aquele ministério desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre-se a sessão parlamentar: o novo ministério regenerador vai falar. (...)
Os senhores taquígrafos aparam as suas penas mais velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência para comunicar aos governadores civis e aos coronéis a regeneração da pátria. Os senhores correios de secretaria têm os seus corcéis selados!
Porque enfim o ministério regenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa, com alegria e esperança!
- Tem a palavra o novo presidente do conselho.
- O novo presidente: Um ministério nefasto (apoiado, apoiado! exclama a maioria histórica da véspera) caiu perante a reprovação do país inteiro. Porque senhor presidente, o país está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maneira de nos salvarmos...
Murmúrios. Vozes: Ouçam! Ouçam!
«... É por isso que eu peço que entre já em discussão... (atenção ávida: sente-se palpitar debaixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão - o imposto (...)» (apoiado! apoiado!)
E nessa noite reúne-se o centro histórico, ontem no ministério, hoje na oposição. Todos estão lúgubres.
- Meus senhores, diz o presidente, e a sua voz e cava. - O país está perdido! - E dando uma punhada: - O ministério regenerador ainda ontem subiu ao poder e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão, propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o país a esta última desgraça! - Guerra ao imposto!»
Não, Não! Com estas divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos."

in As Farpas, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, 1871

É impressionante como este e outros textos de “As Farpas” são tão actuais, quase 140 anos depois. Os escritos de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão são uma magnífica caricatura da sociedade Portuguesa da época.

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